Sentado no banco do ônibus junto à janela, ele olhava para o
lado de fora acompanhando o movimento da cidade que despertava. Ainda estava
sonolento depois de uma noite mal dormida devido à intensa chuva que caía. Ele
tinha dificuldades para dormir em noites de chuva forte. Um pouco pelo barulho
das gotas explodindo em sua janela, e muito por sentir uma certa fascinação por
aquilo. Ele não se encantava com uma coisa em particular. Não eram as nuvens
carregadas no céu, não eram os trovões, nem os relâmpagos, não era a chuva
caindo, não era o cheiro de terra molhada. Era o conjunto. Assim, só conseguira
adormecer quando a tempestade cessara.
Aquele era um caminho corriqueiro para ele. Sempre embarcava
naquela mesma linha de ônibus. Nada do que via pela janela, portanto, o chamava
a atenção especialmente. A única coisa que mudava de um dia para o outro eram
as pessoas e, ainda assim, vistas através do vidro em movimento, elas pareciam
consideravelmente iguais.
Deste modo, ele seguia rumo ao trabalho. Nos ouvidos, os
fones que sempre carregava consigo estimulavam seus sentidos com uma música
suave – muitos pianos, poucas guitarras. Só não pegava no sono porque os
buracos nas ruas da cidade impediam, fazendo o coletivo balançar sem parar.
Com a cabeça escorada na janela, olhava para a rua
despretensiosamente. Foi, então, que a viu. Não conseguiu vislumbrar seu rosto,
mas era ela. Só podia ser ela. Os longos cabelos negros, o andar elegante, as
pequenas mãos pendentes. Definitivamente, era ela.
O ônibus continuou e ela ficou para trás. Ele, por sua vez,
seguiu com a certeza de que a vira de novo. Vinha sendo assim nas últimas
semanas. Por alguma razão que desconhecia, o universo conspirara para que, em
uma inacreditável série de coincidências, seus caminhos se cruzassem e ele a
visse todos os dias.
Ou era isso, ou estava tendo alucinações. Das duas, uma.
Uma sequência de coisas estranhas vinha acontecendo com ele.
Coisas que nunca antes haviam acontecido. Seguidamente, via-se conversando
sozinho, como que se ensaiasse para um reencontro que nunca iria acontecer. Não
havia lugar ou hora específica para isso ocorrer. Caminhando na rua, no café da
manhã, na parada esperando o ônibus, tomando banho, no banco de trás do táxi,
enquanto pilotava sua moto. Curiosamente, a cada novo monólogo, ele dizia algo
diferente. Sua percepção acerca das situações que sua mente perturbada criara
mudava com o passar dos dias. Aquilo não o incomodava de todo. De certa forma,
era como se estivesse fazendo terapia consigo mesmo. Quem mais haveria de
compreendê-lo? Sempre fora um bom ouvinte. Tornara-se um bom falante também.
Ele sabia que tudo aquilo fazia parte do processo de
distanciamento. Era natural sentir-se confuso. Antes de começar a vê-la em todo
o lugar, escrevia diversas mensagens para ela que nunca enviava. Queria puxar
papo, conversar. De algum modo, queria relembrar os bons tempos em que passavam
horas falando um com o outro. Sentia falta daquilo e buscava encontrar meios
tortos para compensar a ausência.
Ficou especialmente triste na noite em que se deu conta de
que já não lembrava mais como era o cheiro dela. Ele adorava aquele cheiro que
era só dela. Agora, já não conseguia mais senti-lo ou evocá-lo em suas
memórias.
Percebera, então, que era assim que se deixava de amar uma
pessoa. Aos poucos. Dia após dia. Não se deixa de amar de uma hora para a
outra. Tampouco se deixa de amar tentando apagar o sentimento como um todo. Se
deixa de amar esquecendo das pequenas coisas. Da voz cochichando no ouvido, da
mão sobre a pele, do som da risada, do jeito que os cabelos caíam sobre o
rosto, do gosto do beijo. Tinha medo de como iria ser quando se esquecesse de
como era bom quando estava com ela. Essa seria a derradeira pequena lembrança.
Depois disso, não restaria mais nada. Apenas uma fotografia no fundo da gaveta,
um ingresso de cinema sobre a estante.
Agora, porém, mesmo já não conseguindo lembrar de quando
eram um casal apaixonado, ele a via em todos os lugares. Não eram outras moças
parecidas com ela. Elas vestiam os mesmos tipos de roupas que ela costumava vestir.
Caminhavam da mesma forma que ela caminhava. Moviam-se como ela se movia. Algo
no modo como ela se movia, o atraía como nenhuma outra. Ele reconheceria aquele
caminhar se ela estivesse passeando na lua e ele a enxergasse da Terra sem os
óculos que corrigiam sua miopia.
Pensou em procurar um médico psiquiatra. Estava perdendo a
cabeça. Talvez, fosse melhor ir a um psicólogo. Havia algo de errado. Tinha de
haver algo de errado. Racionalmente, sabia que não era ela. Era impossível ser
ela. Em uma, duas ou até três vezes, quem sabe. Mas em todas, quase vinte, não.
Não era real. Não poderia ser real.
Certa vez, quando ainda conversavam e ele nutria alguma
esperança de uma reconciliação, ela lhe disse para parar de procurá-la. Disse
que não tinha volta, que era definitivo, que havia acabado. Ela nunca havia
falado daquele jeito com ele, com ódio na voz. Aquele fora um ponto de virada.
Não a reconhecera. Ela já não era mais aquela por quem se encantara. Depois
daquela tarde, ele entendeu que deveria se afastar. Daria espaço para ela
seguir, e procuraria o seu próprio espaço para continuar.
Isso não fez com que deixasse de sentir o que sentia, porém.
O sentimento apenas mudou, da mesma forma como ele mudara. Na tentativa de se
ver livre do amor que levava na epiderme, tratou de escondê-lo dentro de si.
Assim, sem ter mais como despejar para fora o sentimento que o fazia
transbordar, deixou que ele acumulasse em seu interior. Deveria saber que,
quando se represa um rio, ele não míngua até desaparecer. Ao contrário, ganha
força e procura por um caminho alternativo. Foi o que aconteceu.
Inicialmente, o sentimento encontrou na inconsciência dos
sonhos uma válvula de escape, um escoadouro. Sonhara com ela diariamente por
quase um mês inteiro. Era o mesmo sonho todas as noites. Nada mudava. Ela, deitada com a cabeça sobre o seu colo. Ele, com os dedos em meio aos seus
cabelos. Não diziam nada um para o outro. Ficavam ali por alguns minutos e,
então, ele despertava.
Depois, quando os sonhos se foram, passou a ouvi-la chamando
pelo seu nome, geralmente quando estava prestes a adormecer. Era um sussurro
quase inaudível, mas ele conseguia escutar claramente. Somente ele.
Por fim, começou a vê-la nas ruas.
Pensou muito a respeito daquilo. Queria entender. Sempre
tivera em seu cérebro o seu melhor amigo. Um companheiro fiel que nunca lhe
deixara na mão. Agora, via seu parceiro tentando lhe enganar, lhe pregar uma
peça.
Semanas se passaram sem que ele ficasse uma dia sequer sem
vê-la. Alterou seus caminhos, buscou distrações para ocupar seus neurônios.
Nada funcionou. Convenceu-se, assim, que estava enlouquecendo. Era isso, estava
enlouquecendo.
Tentou levar a vida do jeito que podia. Mas já não podia
mais. Aos poucos, foi se isolando. Para fugir das visões dela, foi se isolando.
Primeiro, deixou de sair de casa para se divertir. Depois, não mais visitou os
amigos e familiares. Por fim, pediu demissão do emprego.
O apartamento tornou-se o seu refúgio. Ali, ela não ousaria
aparecer. Não teria tamanha audácia.
Durante três meses, viveu a tranquilidade da ausência. Nunca
havia desejado tanto não a ver mais. Nunca se imaginara tão feliz por seu
desejo ter se tornado realidade.
Havia recuperado a sua sanidade. As coisas iam bem diante
das circunstâncias. Estava retomando o controle de sua vida.
Até uma manhã chuvosa de outono.
Barbeava-se no banheiro quando, no espelho à sua frente, uma
imagem refletida lhe paralisou.
Era ela. Claramente, era ela. Caminhava tranquilamente, com
certo grau de insolência no andar, pelo corredor, do quarto em direção à sala.
Largou o aparelho de barbear na borda da pia e, de um pulo,
foi atrás dela. Como era de se esperar, não havia ninguém ali além dele. Estava
sozinho. Fisicamente sozinho.
Em desespero, foi até a porta que dava para o corredor do prédio.
Estava trancada, como a deixara na noite anterior. Abriu-a, olhou para fora. Ninguém.
Voltou para dentro do apartamento. Correndo, foi em cada
cômodo. Cozinha, sala, quarto. Procurou nos cantos, embaixo da cama, dentro do
roupeiro – talvez, ela tivesse se escondido para lhe provocar. Nada.
Cansado, confuso, voltou ao banheiro e ligou o chuveiro.
Despiu-se e sentou-se sob a água fria que caía sobre a sua cabeça e escorria pelo
seu corpo nu. Permaneceu assim por muito tempo, por horas. As gotas de água
confundiam-se com as de suas lágrimas.
Ficou ali até compreender o que se passava. A resposta veio
junto com o explodir de um trovão do lado de fora. Era isso. Estava claro.
Cristalino.
O barulho vindo do céu o fez lembrar do dia em que
caminharam abraçados sob um pequeno guarda-chuva enquanto seguiam pelas ruas
movimentadas do Centro da cidade. Percebera que nunca a avistara por lá.
Passava quase todos os dias pelo Centro, e jamais a vira ali. Dera-se conta,
então, que as aparições nunca se deram em locais nos quais haviam estado quando
ainda eram um casal. Sempre que a vira em suas ilusões, fora em lugares, ruas e
avenidas em que nunca tinham ido juntos.
Era isso.
Seu cérebro estava tratando de compensar o tempo curto que
estiveram lado a lado, fazendo ele a enxergar em lugares que não estiveram juntos
porque não tiveram tempo para isso. O cérebro estava preenchendo as lacunas da história
que não viveram.
Estava calmo. Desvendara o mistério.
Espichou o braço e pegou o aparelho de barbear. Retirou a
lâmina e, com dois movimentos secos e limpos, fez cortes retos nos pulsos.
O sangue escorreu pelas mãos e pintou de escarlate o piso. Um
fino caminho vermelho se formou e seguiu, perdendo a força, até o ralo, levando
com ele a vida que já havia perdido, mas que insistira em manter até que
pudesse entender o que ocorrera.
Morreu com um sorriso no rosto e um olhar sereno.
Estava livre e em paz.
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